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Será que a escravidão teve fim em 13 de maio de 1888? A história já sabe que a abolição não foi uma ação benevolente da princesa Isabel e do Senado. Resultou da pressão crescente de escravizados, negros e negras livres e homens e mulheres brancas que se uniram pelos ideais abolicionistas.
Fico pensando se viagens no tempo fossem possíveis e Machado de Assis resolvesse dar uma passadinha pelo Brasil de hoje. Machado, aquele que, radiante, escreveu: "Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei, que a regente sancionou, e todos saímos à rua, todos respiravam felicidade, tudo era delírio". Provavelmente ele pensaria que acionou o ano errado na máquina do tempo. Certamente acharia que teria voltado alguns séculos. Não acreditaria que estaria em pleno século XXI, com uma população que insiste em não aprender com os erros do passado.
A reflexão acima foi disparada a partir do ocorrido no dia 18 de abril de 2020 no Hospital de Gravataí com o senhor, um homem negro, Everaldo da Silva Fonseca, de 62 anos. Este senhor, ao acompanhar a internação de sua esposa, Maria Gonçalves, uma mulher negra, vivenciou a violência psicológica e física, após ter sido acusado de furto de um celular. Ao assistir a cena, segundo seu Everaldo, a esposa sofreu uma parada cardíaca após vê-lo ser espancado por funcionários do hospital e faleceu. O que leva a apontar esse homem ser suspeito pelo desaparecimento de algum objeto? É um fato isolado? Sabemos que não.
Pois é, querido Machado de Assis, não estamos em delírio de alegria como no dia 13 de maio de 1888. Aqui "princesas" e "príncipes" continuam se achando superiores. Temos situações de homens e mulheres negras que são agredidas em agências bancárias, universidades, competições esportivas, hospitais e, em praticamente, todos os espaços. No Brasil, as pessoas negras podem ser mortas até por carregarem um guarda-chuva, pois, sem conferir, confundem com um fuzil e são assassinados. São mortos pelo peso do corpo, são mortos simplesmente pela pele.
Vejo muitas pessoas afirmando que não são racistas, mas repetindo gestos que tem origem na nossa triste história de desvalorização de um povo que é maioria em nosso país (56,10% segundo o IBGE). O racismo pode vir disfarçado até em piadas sem graça ou frases repugnantes. Eu mesma, posso apontar várias sentenças naturalizadas em nossa sociedade: "A coisa está preta; Mas ele é tão limpinho que nem parece negro; Não vá denegrir a imagem dele; Você entrou para minha lista negra; Ele deve ter comprado no mercado negro; Estou com inveja, mas é branca; Isso só pode ser serviço de preto; Mas que negro folgado; Ovelha negra da família". Nenhuma delas é agradável de ouvir e considero que não podemos ficar calados frente ao racismo latente. Já pensou nascer, crescer e morrer ouvindo isso uma vida inteira até que um dia o seu corpo diz "não mais"?
O que dizer quando o próprio presidente da Fundação Palmares incorpora o capitão do mato? Para quem não lembra, essa era a designação para a pessoa que ganhava a vida caçando os escravizados e os entregando a seus senhores, que em troca retribuíam em dinheiro. Quando esse senhor, hoje, fala que a escravidão foi benéfica para o Brasil, certamente faria com que Machado de Assis tivesse um infarto, fulminante. Quem não se lembra da repercussão do medo de colapso econômico com o fim da escravidão?
Lamento Machado, ainda não melhoramos. Estamos torcendo que essa pandemia nos torne melhores, traga mais gestos de solidariedade ao invés de piedade. Estamos tentando, apesar de ver líderes insistirem em desmontar a democracia, que foi construída a duras penas nesse país.
*Machado de Assis (1839/1908): romancista, cronista, dramaturgo, contista, folhetinista, jornalista e crítico literário.